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Seu pente não me penteia



Imagem: Blogueiras Negras



“O mundo está ficando muito chato”. É comum a gente ouvir tal reclamação de pessoas insatisfeitas com a restrição no nosso vocabulário de termos usados para ridicularizar, humilhar, rejeitar ou até mesmo excluir seu alvo do meio social. Elas odeiam as normas do chamado “politicamente correto”.


Afinal, “qual o problema de fazer piada em público contra pobre, preto, gay, gordo, cadeirante, rir da condição, gênero ou aparência do outro?”, afirma o grupo excludente, indignado. Problema gigante. Na verdade, não são piadas e nada têm de engraçadas. São manifestações camufladas de preconceito, racismo, ódio e intolerância, repetidas impunemente ao longo de centenas de anos, há pelo menos 500 anos por aqui.


A maior parte das expressões é herança do período escravagista, incorporada à rotina do brasileiro. As ofensas e agressões estão por toda parte, disfarçadas, alimentando o racismo que nos massacra todos os dias: na literatura, nos estudos acadêmicos, no repertório musical.


Um exemplo bem popular? As letras de antigas marchinhas de carnaval, inacreditavelmente entoadas até hoje nos clubes e nos blocos de rua das capitais.


O teu cabelo não nega, mulata\Porque és mulata na cor \ Mas como a cor não pega, mulata\ Mulata, eu quero o teu amor. \Tens um sabor bem do Brasil\ Tens a alma cor de anil\ Mulata, mulatinha, meu amor \ Fui nomeado teu tenente interventor.


O termo mulata, para quem não sabe, foi criado para classificar a mulher nascida da relação entre a escrava negra (estuprada) e o homem branco, numa referência à mula, animal resultado do cruzamento de jumento com égua.


Aqui, a mulher negra novamente é traduzida como uma mercadoria carnal, pronta para atender às fantasias sexuais de seu suposto novo proprietário:

Õ mulata assanhada que passa com graça, fazendo pirraça\ fingindo inocente, tirando o sossego da gente\ Ai, meu Deus, que bom seria se voltasse à escravidão\ Eu pegava a escurinha e prendia no meu coração\ E depois a pretoria é quem resolvia a questão.


Oi?


A autoestima da mulher negra também é atacada quando as músicas se referem à nossa estética física como algo exótico, fora do padrão humano, animalizado, objetificado.


Vivemos numa sociedade Eurocentrista, que valoriza o perfil, a cultura e os costumes e, óbvio, a estética do homem e da mulher brancos. E uma das questões que mais incomodam a branquitude é o cabelo crespo das afrodescendentes. Deixar os cachos naturais, soltos, trançados, elaborados, coroados com turbantes, laços ou lenços, é uma afronta, uma petulância das negrinhas, pensam eles. Não aceitam de jeito nenhum, partem para ofensas pessoais, até mesmo usando a música para atacar.


Nega do cabelo duro\ Qual é o pente que te penteia? \ Qual é o pente que te penteia? \ Qual é o pente que te penteia, ô nega? …Misampli a ferro e fogo\ Não desmancha nem na areia \Tomas banho em Botafogo\ Qual é o pente que te penteia, ô nega?


A famosa canção é de 1942, criada pelo compositor e jornalista David Nasser, o mesmo autor do singelo hino do réveillon: “Adeus, ano velho! Feliz ano novo! Que tudo se realize no ano que vai nascer muito dinheiro no bolso\ Saúde pra dar e vender.


E depois, já na década de 80, teve o Fricote, de Luiz Caldas:

Nega do cabelo duro Que não gosta de pentear \ Quando passa na Baixa do Tubo \ O negão começa a gritar: “Pega ela aí, pega ela aí Pra quê? Pra passar batom? Que cor? De violeta Na boca e na bochecha”


Em 2017, o Movimento Negro fez barulho para que as músicas com conotação racista fossem banidas da folia e das rádios. Algumas agremiações e emissoras entenderam que o momento não permite mais o culto ao racismo e restringiram o repertório. Outros, no entanto, se fizeram de surdos e burros, mantiveram o cardápio musical e suas fantasias racistas, como “Nega Maluca”, “Black face”, perucas Black Power e Rastafari, babás e empregadas domésticas. Eles alegam defesa das “tradições e leveza” do carnaval. Racismo é crime, mas quem liga?


A hipersexualização do corpo feminino negro, exaltado principalmente na época do carnaval, quando se passa a ideia de que a sexualidade da mulher negra é pública e liberada, surge também em outros meios ao longo do ano e de modo subliminar, como na publicidade, nas novelas, nos programas de TV, nas redes sociais.


Um perigo iminente, que pode refletir nos dados da violência no Brasil: 75% dos casos de feminicídio são de mulheres negras. Três, em cada cinco vítimas de estupro, são mulheres negras. O levantamento é do grupo de estudos Monitor da Violência, que ressalta as dificuldades para obter os números oficiais da criminalidade, já que os estados não registram a raça das vítimas da violência. Portanto, o cenário pode ser ainda pior.


Não existe brincadeira quando se trata de racismo. Nem em expressões “politicamente incorretas” para descontrair o ambiente, nem em comentários sobre aparência física do outro, nem nas letras de músicas para animar o carnaval. O racismo causa vítimas, traumas, doenças, mortes por sufocamento. Mortes por desistência, mortes por abandono. E não existem inocentes nessa teia.

Texto original para o site: http://blogueirasnegras.org/

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