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A Força das mulheres indígenas no Poder, por Alessandra Roscoe*


*especial para o site


Quando luto é verbo todo dia e resistir não é escolha

No momento em que os olhos do mundo se voltam para a tragédia humanitária e sanitária vivida pelos Yanomami em Roraima - 570 crianças de até cinco anos de idade morreram de fome e falta de cuidados nos últimos quatro anos por descaso do estado e outras centenas de comunidades indígenas em todo o Brasil enfrentam em seus territórios a sanha destruidora do garimpo ilegal, da extração de madeira, do narcotráfico, consequências diretas da falta de demarcação de terras - é tempo também de celebrar a vida, a resistência de 523 anos e uma nova página da nossa história que começa a ser escrita com a pena dos cocares da mulheres originárias.

Pela primeira vez no Brasil, duas mulheres indígenas são eleitas para ocupar cargos no Congresso Nacional. Célia Xakriabá (Psol-MG) e Sônia Guajajara (Psol-SP) chegam juntas à Câmara dos Deputados, espaço majoritariamente branco e masculino, para inaugurar também a primeira Bancada do Cocar. O caminho foi aberto em 2018 por Joênia Wapichana (Rede-RO), a primeira mulher indígena a chegar ao Parlamento, mas começou a ser traçado muito antes, no chão das aldeias, em lutas diárias por voz e representação. As três foram empossadas nos últimos dias. Joênia agora responde pela presidência da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), que desde a criação, em 1967, nunca havia sido comandada por um originário.


Elas chegam com a força da ancestralidade e com inúmeros desafios pela frente. Historicamente as mulheres indígenas, crianças, jovens e anciãs enfrentam violências de gênero as mais diversas. Das coloniais e patriarcais, às psicológicas, físicas e sexuais. O combate à violência de gênero dentro das aldeias é uma das bandeiras de luta.

Para garantir esses espaços de fazer, elas se juntam, se organizam, como fizeram nas duas grandes Marchas de Mulheres Indígenas em 2019 e 2021, nos Acampamentos Terra Livre e agora na Pré-Marcha que reuniu em Brasília mais de 150 lideranças indígenas femininas de todo o país para traçar as estratégias do movimento, marcado para setembro deste ano. Vieram discutir, reivindicar e elaborar propostas, mas vieram também testemunhar a posse das parentas que consideram uma posse ancestral.

Com rezas e ervas, no ritmo dos maracás, no entoar das vozes, no rodar dos corpos pintados de jenipapo e urucum, ornados com as cores das penas e das miçangas, a chegança veio de muito antes, como tudo na trajetória delas, que há séculos tentam fazer com que suas vozes e seus gritos sejam escutados.


Célia Xakriabá, Sônia Guajajara e Joênia Wapichana não chegam ao coração político do País sem trazer consigo cada um dos corpos tombados em seus territórios. Nos últimos quatro anos, foram assassinadas em conflitos por terra, 40 lideranças indígenas.

Essas mulheres guerreiras seguram o céu acima de nossas cabeças, mantêm o que resta das florestas de pé, mesmo diante do descaso do Estado. Isso porque são mulheres-semente, mulheres -onça que não se intimidam e que sempre estiveram prontas para assumir o protagonismo de suas histórias.


Conquista histórica


Sônia Guajajara, ministra dos povos indígenas, pasta que também pela primeira vez será ocupada no governo brasileiro, comemora, mas sabe que a luta seguirá sem trégua.

"Vivemos um momento de muita alegria, mas não podemos esquecer das tragédias que s assolam. Só em janeiro foram três assassinatos e duas tentativas no meu território. E é por isso também que tenho coragem de seguir e dizer que a gente nunca chegou sozinha, porque ninguém chega sozinho e a violência contra nossos povos vai continuar".

No Congresso, a deputada Célia Xakriabá promete reflorestar mais do que mentes e comportamentos:

“Quando nos negaram o microfone no Congresso Nacional, nós cantamos todas juntas do lado de fora, somos semente e não mulheres somente, chegamos ao Congresso eu e Sônia, a bancada do cocar, mas levamos com a gente mais de 900 mil indígenas. Vamos entrar naquele salão verde que é desmatado, porque nunca se pensou a presença das mulheres indígenas em sua diversidade. Poder vai ser o que nós faremos. Temos um pé no chão da aldeia e outro do lado de cá, porque nós somos o Brasil que resiste. Antes do Brasil da coroa, existe o Brasil do Cocar!”.

Ser ouvida na casa dos surdos

Ao lado de Sônia e Célia, no dia da posse, outras ministras se fizeram presentes e falaram também da importância do que estavam testemunhando.

Para Marina Silva, ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, ter Célia no parlamento, Sônia na Esplanada e Joênia na Funai é a sinalização de que se inicia o tempo de reparar séculos de apagamento dos povos indígenas, que assim como o povo preto, sempre foram deixados trancados do lado de fora. “Agora nós estamos aqui para abrir portas e não mais entrarmos por frestas”, disse a ministra, durante a solenidade de posse.

Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial, citou Célia Xakriabá para lembrar que, naquela casa de surdos, as mulheres indígenas de agora em diante serão ouvidas. Outra que celebrou o feito das novas parlamentares foi Margareth Menezes, ministra da Cultura. Ela lembrou que dar voz e vez aos povos originários com um ministério é um direito ancestral e que veio pra ficar.


Txai Surui, jovem liderança da Amazônia, única brasileira a ter voz no salão principal na COP 26, acredita que este é o tempo de esperançar, “de parar de resistir um pouco para poder começar a sonhar, porque a gente merece sonhar também e começar a construir”.


Momento de retomada

Samela Satere-Mawé, influencer indígena que faz questão, dentro e fora das redes sociais, de ocupar todas as esferas de poder que lhe cabem, não esconde o descontentamento com todos os anos em que outros falaram pelos povos indígenas. Ela ressalta a importância da terra fértil que se abre para construções coletivas e ancestrais, com mais indígenas nas esferas federais e estaduais do poder.


Elizângela Baré, liderança e comunicadora indígena, é outra que enxerga sinais de novos tempos com a chegada não de uma, mas de duas parentas no Congresso e de outras indígenas nos espaços de poder. Ela fala sobre os desafios da educação, da saúde, da destruição dos biomas e das violências nos corpos e territórios indígenas. Defende garimpo zero e demarcação já com o alerta de que as mulheres indígenas aprenderam na marra, nesses anos todos de violências, a fazer de suas dores, instrumento de luta.

"A gente chora e nossas lágrimas regam as sementes das mudanças que queremos, que sonhamos e elas brotam com mais força!"


Combate ao garimpo ilegal

A semana da ascensão dos cocares ao Poder em Brasília foi encerrada com a posse-celebração de Joênia Wapichana. Numa solenidade concorrida na sede do Memorial dos Povos Indígenas, Joênia anunciou a retomada da Funai e, antes mesmo de discursar, assinou sete atos para a criação de Grupos de Trabalho que pretendem identificar e demarcar áreas sensíveis nos territórios e combater, principalmente o garimpo ilegal.

“A Funai voltou e eu quero dizer que todo esse caminho que fizemos para chegar até aqui, foi longo, sofrido. Mas isso agora vai mudar. Vamos fortalecer a Funai.”, ressaltou.


A retomada urgente das demarcações é um dos temas fundamentais para a reconstrução das políticas públicas voltadas aos povos indígenas, assim como combate ao garimpo ilegal e a busca por políticas públicas de saúde, justiça segurança, educação e cultura nos territórios. As mulheres indígenas garantem que mais do que fiscalizar, querem participar de forma ativa de todas as construções daqui para frente.

*Reportagem e fotografias de Alessandra Roscoe



Alessandra Roscoe é jornalista, escritora e coordena o Uniduniler (www.uniduniler.com.br ) projeto de mediação de leitura, que desde 2013 percorre o Brasil levando livros e afetos, onde nem sempre eles chegam. Mineira de Uberaba, Alessandra vive em Brasília com o marido e os três filhos. Autora de mais de 40 livros para a infância, tem obras traduzidas em outros países, em bibliotecas internacionais, e adaptada para o cinema. Foi finalista do Prêmio Jabuti em 2013.

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