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Foto do escritorElisa Maria

Por um Brasil menos árido, por Márcia Lage*


📸Márcia Lage

*Especial para o site


O excesso de informação brutaliza, entristece, separa, julga, condena, viraliza. No sentido literal do poder de um vírus sobre nossas vidas. Sai do mato sem Internet onde me refugiei da pandemia e cai de volta na cidade grande, entortada pelo esforço de plantar. O esqueleto, que se arrasta pirracento para a sétima década, cobrou reparos.

Pela primeira vez, desde que comecei a envelhecer, temi as pedras do fim do caminho. Não pensava nelas. Mas uma torção muscular que travou minha lombar expôs de repente nossa fragilidade na reta final da maratona de viver. Os remédios para dor me provocaram vômitos e, depois, diarreia. Pensei: Não é só isso. Tem algo mais no meu corpo anunciando que a alma está sufocada. O esqueleto ruiu, o estômago cansou, o coração ficou amargo. À minha volta, amigos cheios de doenças graves. Câncer, cardiopatia, AVC, mobilidade reduzida por artrites, mas, acima de tudo, tristes e ansiosos ao nível do desespero. Nosso desamparo é mútuo. Afinal, estamos vivendo a hora mais trágica de nossa história recente, como bem definiu Fernanda Montenegro. Mais triste do que a Ditadura, segundo ela, porque agora foi pelo voto direto a escolha do nosso retrocesso moral, político, social e cultural.

Perdemos nossa assinatura, disse Fernanda ao Fantástico. A cultura é o que define um povo, e a nossa definha. Caetano Veloso gravou um vídeo com nova música chamada Não Vou Deixar, onde fala a mesma coisa: Não vou deixar você esculachar com a nossa vida, com a nossa cara, com a nossa pinta. Porque sei cantar, e há outros que cantam muito mais, ele diz, dançando meio desajeitado, a cara amarrada, sem um pingo de alegria para soltar o pássaro engaiolado no peito dele.

Quando se refere a outros que cantam muito mais, talvez se refira a Chico Buarque, que escreveu um livro de contos chamado Anos de Chumbo, referência àqueles 21 que nos roubou o avanço, e a esses quatro mais recentes que nos subtrai o futuro.

Os três são velhinhos históricos, que lutaram com palavras, música e arte por um país com assinatura, uma grife que até pouco tempo surpreendia o mundo com sua criatividade, alegria, irreverência, colorido. Dava inveja nos países cinzas. Aquecia corações gelados no extremo norte do Globo.

A conquista desse respeito, no entanto, não foi pacífica nem rápida. Wagner Moura fez um recorte dessa jornada do Brasil no filme Marighella, que para nós, acima dos 50, não causa espanto. Se não vivemos aquilo, conhecemos quem viveu, crescemos num país cheirando a pólvora e ao arroto dos ditadores, cuja brutalidade de ideias sojigou as nossas.

O diretor compensa a violência da narrativa com momentos íntimos dos guerrilheiros fazendo piadas, rindo uns dos outros, tentando dar leveza ao peso da missão que se impuseram, sabendo que a luta era muito desigual e que morreriam, como morreram. No caminho entre a resistência e a morte (ou a tortura e o exílio) tentaram amar, tentaram ser felizes no meio da escuridão. Quando a luz chegou, graças a eles, a democracia foi restaurada, o voto direto instituído. Estranhamente, o povo libertado preferiu voltar para a prisão. Elegeu o carcereiro.

É natural que estejamos cansados e tristes e desesperançados. Ansiosos no limite da loucura e do surto, com uma cápsula de cianureto na bolsa, à espreita do pior. Merecíamos o descanso e o aconchego de uma sombra depois de tanta luta, e temos que seguir lutando, falando para surdos, pregando no deserto. Como Fernanda, Caetano, Chico e os de sempre. Estão todos rindo pouco, muito pouco, reparei.

Chico gravou uma música chamada Voo Cego onde usa a metáfora de pássaros para falar de uma grande brochada. De tentativas infrutíferas de amor entre pessoas que perdem as asas. Que quando conseguem voar, despencam no mar. Estamos brochas. Nossa geração, que voou como nunca, longe e alto, rasgou densas nuvens de costumes arcaicos no céu de chumbo deste país, revelando um azul de infinitas possibilidades. Caímos no mesmo mar de antigos piratas e gordos tubarões, que nunca se saciam de nossas carnes, nossas matas e nossa alegria.





*Márcia Lage é jornalista, escritora e, acima de tudo, cidadã do mundo. Nunca sabemos onde encontrá-la, apesar de ter endereço fixo em Paraty, Rio de Janeiro. Por enquanto. Mineira em profundidade, Marcinha carrega ainda hoje o delicioso sotaque minerês. Na essência também. Mestre na arte de escrever, ela não mede as palavras, nem as emoções. Seus textos carregam verdades, um tanto singelas, um tanto mordazes. Essa menina é um furacão de ideias e atitudes, sempre pronta a promover revoluções.





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