📸Gilberto Soares\@andarapebrasil
O mês de Julho é dedicado no Brasil à visibilidade da mulher negra, com a promoção conjunta de diversas ações políticas, culturais e artísticas, voltadas para o fortalecimento coletivo ou autônomo das mulheres negras nas diversas esferas da sociedade. O Julho das Pretas foi criado em 2013, com o objetivo de lembra e resistencia dessas mulheres contra o racismo, o machismo, a violência, o feminicídio e os tantos outros crimes dos quais elas ainda são vítimas.
O mês foi escolhido para celebrar junto o 25 de Julho, Dia Internacional da Mulher Negra Afro Latina Americana e Caribenha, data instituido pela ONU durante o encontro histórico de Santo Domingo, em 1992, que reuniu mais de 300 representantes de 32 países na capital da República Dominicana.
Este ano, fui uma das escritoras homenageadas no IV Julho das Pretas que Escrevem no DF, evento que faz parte da programação do grande Festival Latinidades. O encontro lotou o auditório do Museu da Republica e eu, é claro, me senti feliz, honrada e orgulhosa pelo reconhecimento e respeito que a atividade tem me proporcionado no universo literário e pessoal.
E como eu cheguei até aqui, podendo hoje me apresentar como escritora, se até outro dia eu era apenas uma jornalista? foi o que tentei explicar para a platéia e reproduzo aqui o meu discurso carregado de emoção e timidez:
📸Gilberto Soares\@andarapebrasil
"É uma honra para mim estar aqui nesta tarde, sendo homenageada, ao lado dessas companheiras do ofício da escrita literária. Peço licença para ler o que eu gostaria de falar aqui hoje, para eu não me perder nas ideias.
Afinal, eu me expresso melhor com o movimento frenético dos dedos, sou da época da máquina de escrever, as ideias fluem melhor enquanto escrevo.
É uma surpresa para mim ser hoje reconhecida como escritora e poeta, pois esse NÃO FOI um caminho traçado por mim. Eu jamais ao longo da minha vida, nem quando criança, nem na adolescência ou mesmo já adulta, sequer pensei, ou mesmo verbalizei o desejo de ser escritora dedicada à literatura.
Porém, sem que eu percebesse, esse estilo de escrita, que expõe sua alma, seus desejos, encantamentos, medos, sobressaltos, alegrias, êxtase, enfim, os sentimentos que permeiam o nosso existir, SEMPRE caminhou ao meu lado, deu pistas, dançou na minha frente, se exibiu, deu cambalhotas, mas eu não ousei me permitir ter tal talento. Talvez por considerar que escritoras e escritores eram uma categoria presa no Olimpo, seres especiais com capacidades extraordinárias.
Nunca foi me dito na escola, nem em casa, que eu, ou nós, pudéssemos seguir essa carreira. O exemplo que nos davam em sala de aula era do livro O Feijão e o Sonho - um romance do escritor paulista Orígenes Lessa, publicado em 1938. A trama gira em torno de Campos Lara, poeta que vive a embalar o sonho da criação literária, alheio aos aspectos práticos
da luta pela sobrevivência. E sua esposa penava resiliente para garantir o alimento da família.
Mas eu escrevia desde muito jovem sobre meus dramas existenciais, minhas paixões juvenis, em folhas avulsas, ou nas últimas páginas de um caderno. Na verdade, já eram poemas, que eu chamo de desabafos, guardados em absoluto segredo.
Até que chegou o momento de escolher uma profissional e a que chegava mais perto da minha necessidade de registrar com palavras o que eu via/ convivia ao meu redor, foi o jornalismo. Escolha que também mantive em segredo até às vésperas do vestibular, porque meu irmão mais velho já era jornalista e eu não queria ser comparada com ele, ser tida com a irmã invejosa, incapaz de traçar seu próprio rumo etc. Mas não teve jeito, era o que eu tinha que fazer. Até porque o jornalismo me alinhava não só a escrita, mas também a sede por justiça social. A utopia de transformar o mundo tão desigual e cruel por meio de denúncias nas páginas impressas de jornais e revistas. Estou falando do início dos anos 80, quando me formei em jornalismo. Década de muita efervescência de política, por conta era o fim da ditadura militar, surgimento de vários movimentos sociais urbanos e no campo, mobilização para construir uma nova Constituição, sindicatos fortalecidos.
Época que o jornalismo foi exercido com muita paixão. E eu entrei nessa paixão.
No início da carreira passei pelos principais jornais da cidade - Correio Brasiliense e Jornal de Brasília - atuando principalmente nos cadernos de Cultura, onde eu tinha liberdade de formatar o texto sem intervenções no estilo. Foi uma grande escola, eu caprichava no chamado “nariz de cera”, que é tipo a introdução “artística “antes de entrar no fato da reportagem.
Até que em 1989, nas vésperas da primeira eleição direta para presidência da República, eu resolvi bater na porta da TV Bandeirantes, sem nunca ter pisado numa televisão. Perguntei na recepção quem era o chefe, era uma mulher, entrei em sua sala e pedi emprego. Eu queria sair do jornal impresso, a relação interna, da redação de maioria masculina branca, cheia de brincadeirinhas machistas, racistas, homofóbicas, tudo isso passou a me incomodar muito, me adoecer naquele ambiente tóxico.
Para minha surpresa, a Band me aceitou, precisava de reforço na produção por conta das eleições. De produtora passei a editora, fiquei lá por sete anos, até ser convidada pela TV Globo, onde trabalhou por 24 anos até me aposentar. Como editora de texto dos telejornais, encarei o ato de comungar a imagem com a escrita como um grande exercício literário também. E estava tudo certo: eu continuava escrevendo minhas coisinhas na surdina, e praticando a escrita jornalística diariamente.
Para finalizar, voltando lá para o início, foi já aposentada no papel que, em 2018, lancei meu primeiro livro reunindo a poesia que criei ao longo dessa trajetória e me encontrei, ou me encontraram na literatura. E hoje, aos 66 anos, já posso enfim me apresentar como Elisa Mattos, escritora, muito prazer. Comparo essa minha trajetória ao movimento SANKOFA, precisei buscar lá atrás o que sou no momento, mirando o futuro.
Obrigada. Axé!"
📸Gilberto Soares\@andarapebrasil
A escritora apareceu! Parabéns!
😍
😍